quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Maurice


Quando começamos a assistir Maurice, a primeira ideia que temos é: já sei o que vem daqui pra frente. O filme desaponta com a a sequência inicial, extremamente clichê e forçosamente engraçada. As lições de anatomia feminina ao jovem que dá nome ao filme já prenunciam o desinteresse deste em relação ao sexo frágil. Logo ao entender qual é sua suposta missão na Terra, trata de avisar ao seu mentor que não irá se casar, arrancando risadas deste, que espirituosamente diz que em 10 anos cederá um lugar à sua mesa de jantar para ele e sua futura mulher.
A amizade que cresce entre Maurice e Clive, já na universidade, encaminha para um sentimento mais forte que a princípio foi encarado de forma relativamente natural pelos dois, aparte uma relutância de Maurice. Ambos têm a prudência de manter os afagos muito bem escondidos dos olhos dos colegas e todos de forma geral; homossexualidade era punível como crime nessa Inglaterra pré 1ª Guerra Mundial, com direito a chicotadas; isso sem mencionar o estrago moral causado na imagem de quem fosse acusado de tal barbaridade.
As coisas já se mostram limitadas a partir do momento em que Clive pede para que a relação dos dois não descambe para o físico; para ele, o sentimento deles não pode ser 'destruído', portanto o platonismo daria conta de preservar a pureza do amor entre eles existente. Seu amigo entende, mas a fragilidade desse relacionamento às escondidas é totalmente rompida quando um colega deles sofre o que eles tanto temimam: a fatal acusação de homossexualismo. Clive decide que precisam terminar, e numa tentativa de encorajar Maurice, explica-lhe que o que eles tinham não poderia continuar e que nada se iguala ao amor por uma mulher.
Maurice tenta de tudo. Consulta o médico de família, um especialista em hipnose (o único com uma mentalidade aparentemente equilibrada e compreensiva), se esforça por conseguir ser atraído por mulheres, mas nada consegue. Em um certo momento do filme, fica a impressão de que Clive conseguiu superar um amor pueril, e que Maurice continua com os fantasmas de uma relação proibida que nunca poderia vir à tona. Caberia a este, portanto, superar um romance que foi breve e discreto na vida deles. É quando surge em cena um outro personagem, que foi genuinamente sendo construído aos poucos ao longo do enredo, até assumir importância no filme. É Scudd, couteiro de seu amigo Clive (ja casado), que começa a demonstrar interesse por Maurice. A proximidade se dá pelo fato de Maurice estar frequentando a casa de campo de Clive, lugar onde o primeiro tem passado longos períodos de sua vida.
As dúvidas surgem, depois que Maurice se deita com Scudd; até que ponto este não está se aproveitando da vulnerabilidade do primeiro e procura com isso chantageá-lo quando achar propício, acabando com a imagem de Maurice?

O filme é muito além do que se poderia esperar, uma vez que não se limita ao plano Maurice-Clive, e não cai no aborrecido de lidar com os vai-e-véns dessa amizade conflituosa dos dois. Lida isso, mas não . Após a dúvida pertinente de Maurice, ele opta por arriscar seu amor por Scudd, que se diz ternamente apaixonado também, e os dois decidem por viver seu amor sem medo. A beleza do filme se encontra principalmente nessa segunda metade, quando o personagem de Hugh Grant cede lugar a essa intrigante figura (Scudd), socialmente inferior mas corajoso nos sentimentos e nas intenções. Vemos, portanto, o retrato de personagens plenamente verossímeis: aquele que nega sua natureza e o verdadeiro amor em troca de uma respeitabilidade ampla e um casamento superficialmente bom (mas profudamente sem amor ou contentamento), aquele que tem a coragem necessária para enfrentar de peito aberto a difamação do seu círculo social (a eterna bourgeoise hipócrita), e que no entanto precisa de alguém por quem se apaixone de verdade para que seja capaz de tanto, e aquele que é o feitor da mudança, vindo de onde menos se espera, e que tem a bravura mais incrível de todas.
Maurice passa de um personagem aparentemente fraco para alguém digno de respeito e admiração, e isso não seria possível sem a atuação marcante de todos os envolvidos nessa produção excepcional de James Ivory.
Hugh Grant está ótimo no papel de Clive, muito melhor do que em qualquer outra comédia romântica estúpida que viria a fazer quando se consagrasse como galã britânico. O filme é tocante, apaixonante, esperançoso, profundo e em nada superficial ou ingênuo. Traz o retrato de personagens que poderíamos muito bem encontrar na rua - não em qualquer rua, ou em qualquer época. São figuras que foram retratadas justamente por serem especiais e únicas, mas como dito antes, perfeitamente admissíveis. No final, fica a mensagem de que nada pode superar o amor - seja ele de um sexo ou de outro. Nem mesmo as leis da 'natureza' e da 'procriação' podem superar aquilo que, sutilmente mencionado no filme, os deuses mitológicos há milênios já desfrutam.

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